segunda-feira, 11 de abril de 2016

Claudia Canto ( Rara, Rica e Milionária)



Por Isabelle Senise

Ela é Protagonista – Claudia Canto (Rara, Rica e Milionária)


Descobri que para haver poesia basta haver rua, basta haver gente, basta haver olhar, sendo este último o maior responsável pela poeticidade do cotidiano. Pode-se escolher observar o trânsito, ou o vendedor de livros na calçada. Pode-se escutar buzinas, ou os acordes dissonantes do jazz da esquina. Pode-se reclamar da cidade, ou admirar o grafite que colore o interior dos viadutos. Opções não faltam. Você escolhe.

 “Se os escritores, inventores, cientistas, artistas e os livres pensadores, que mudam o conceito da humanidade, são considerados loucos… O que dizer dos que se vangloriam de serem normais, mas não têm coragem de mudar a própria vida?”

Abro este texto com um trecho escrito pela protagonista de hoje. Escritora, jornalista, relações públicas e técnica de enfermagem é, sem dúvida, uma das mulheres mais ricas que já conheci. Engana-se, porém, quem pensa que riqueza é sinônimo de bens materiais. Falamos aqui, sobre riqueza de alma. E haja riqueza…! Não a apresentarei, estendendo a ela um tapete vermelho, pois isso vai exatamente na contramão de seus valores. Buscarei apresentá-la, na realidade, sob o olhar de quem, como ela, gosta de conhecer almas e contar suas histórias. Apresento-lhes então, minha maravilhosa conversa com Claudia Canto.
Terça-feira, 18 horas. Eu a aguardava ansiosamente em uma mesa do Varanda, meio restaurante, meio bar, localizado logo abaixo do Edifício Copan, na República. O local, sugerido por ela, tem janelas de vidro que permitem ao cliente observar os inúmeros  pedestres que vão e voltam pela Avenida Ipiranga.Mas eu estava concentrada em outra coisa, lendo repetidamente informações sobre sua carreira. Por se tratar de uma profissional admirável (na verdade admirável não é o suficiente para descrevê-la e vocês vão entender o porquê), eu estava um pouco receosa e queria me preparar o máximo que pudesse para conversar com ela. Até que fui interrompida: “Oi Isabella!Estou sete minutinhos atrasada!Me desculpa!Vamos começar?”
Uau!! Uma profissional incrível com uma história fora de sério estava me pedindo desculpas por chegar sete minutos atrasada para conversar comigo. E eu lá, com medo de não me mostrar suficientemente preparada. Há certas pessoas que podem ser extremamente requisitadas, admiradas e cheias de experiência que jamais farão com que outros se sintam em uma posição inferior.E Claudia Canto é, sem dúvida, um dos maiores exemplos disso. Com um par de brincos vistosos e um vestido florido muito bonito que ela revelaria, depois, ter comprado por dez reais no brechó, pediu logo uma taça de vinho para dar uma segurada na ansiedade, pois, mais tarde, iria ainda gravar um vídeo para um possível projeto cultural.
Então vamos à história:
Nascida na periferia de São Paulo, mais precisamente em Cidade Tiradentes (Zona Leste da cidade),  Claudia Canto era apaixonada, desde pequena, por literatura.  Filha de mãe analfabeta e pai semi-analfabeto, nada a impediu de desenvolver, logo cedo, o gosto pela literatura. E pasmem: Em sua adolescência, Claudia já lia Dostoiévski.Aos 15, 16 anos, se arriscava em seus primeiros poemas.Pessoalmente, ela me contou essa história com mais detalhes e bastante senso de humor: “Eu saía para passear com algumas amigas muito bonitas e os meninos olhavam primeiro para elas e, dificilmente, para mim. Mas aí eu comecei a decorar uns vocabulários difíceis e passei a conquistar pelo meu conteúdo.” A “tática” de Claudia se tornou uma maneira, inclusive, de não se deixar levar por homens superficiais, que se interessassem apenas por forma e não pelo conteúdo.Até hoje ela acredita e transmite para adolescentes e mulheres, que a vivência e a leitura são as principais “armas”para contornar homens “cheios de conversinhas”.
Foi através da paixão pela leitura, que Claudia conheceu um homem que se tornaria, em suas palavras, “um desses anjos de luz que aparecem”.  Em uma de suas idas com as amigas ao Parque Ibirapuera, Thomas, um alemão que se aproximou dela, ficou encantado com seu conhecimento.”Ele foi a primeira pessoa a ler um de meus poemas”, ela me contou.Grande engenheiro, inventor e falante de sete línguas, Thomas, que é seu amigo até hoje, percebeu rapidamente o talento e  a garra de Claudia. Transmitiu a ela muitos valores positivos para sua carreira e  passou a incentivá-la incessantemente a ir para a Europa para adquirir bagagem cultural que lhe acrescentaria muito como escritora.
E Claudia foi… Com 26 anos, após se formar em Técnica de Enfermagem e trabalhar na área, conseguiu juntar cerca de 500 euros, bancou sua passagem e partiu rumo a Portugal, ansiosa para chegar na Europa repleta de cultura com que sempre sonhara. Ao chegar, porém, apesar de realmente entrar em contato com a cultura  a que aspirava, descobriu que permanecer um tempo por lá não seria nada simples e que teria que se submeter a certas condições nem um pouco favoráveis. Se brasileiro já sofre preconceito em alguns países do exterior, nem é preciso falar que mulher brasileira, negra, sofre ainda mais…  O que a salvou, em muitas das situações de preconceito e machismo que encarou foi, justamente, sua capacidade de argumentação adquirida através da leitura.
Vendo-se na necessidade de trabalhar para permanecer um tempo em Portugal, Claudia iniciou sua busca por um emprego. Após duas tentativas mal sucedidas como empregada doméstica em casas de famílias, tentou a sorte em uma terceira casa, onde vivia um casal da terceira idade. A casa era, na realidade, um palacete e, os donos, praticantes de costumes extremamente arcaicos da velha Europa. Além de tratarem empregadas domésticas de forma extremamente preconceituosa, determinavam para seus funcionários, quase um “cárcere semi domiciliar”, do qual eles só poderiam sair aos domingos.
Apesar da situação desesperadora de se ver praticamente presa dentro de um palacete, Claudia se determinou a permanecer por lá durante um tempo razoável. “Eu não queria voltar como uma derrotada”, ela me contou. Mesmo sabendo que seus planos não estavam seguindo exatamente como ela sonhava, conseguiu transformar seus novos desafios em um dos principais passos para a sua carreira: começou a escrever um livro descrevendo, como em um diário, cada dia que vivia dentro daquele “cárcere”. O nome do livro: “Morte às Vassouras”.
Após quase um ano em Portugal, retornou ao Brasil com o livro em mãos e uma nova batalha: encontrar uma editora que valorizasse o trabalho de uma mulher negra nascida na periferia. Foram dois anos e meio de buscas e recusas até que, com a ajuda de Thomas, conseguiu que seu livro fosse publicado, em 2002, pela Editora Kazua. Tratava-se da realização de um grande sonho, mas apenas do início de uma saga cheia de superações e, principalmente, determinação.
Claudia Canto é dessas pessoas que não se contentam com pouco e que enxergam poesia em ações, pessoas e histórias.  “O escritor, antes de tudo, é um ladrão. Porque é só com a alma dos outros que ele consegue escrever suas histórias. Eu sou ladra de almas.” Essa foi uma das falas que mais me marcaram durante a nossa conversa. E, definitivamente, explica o que sucede o retorno de Claudia ao Brasil: após publicar seu primeiro livro, sai em busca de um trabalho e o encontra, “simplesmente”, em um hospital psiquiátrico, onde trabalha como enfermeira durante um ano. “Quando eu cheguei lá, um homem se aproximou de mim e apontou para os colegas: ‘aquele é esquizofrênico, aquele é bipolar,aquele toma Diazepam e aquele Gardenal… E você deve estar se perguntando o que eu tenho, né?… Eles que não acreditam, mas sou genro do George Bush e só não saí com a Madona porque não quis.”
Desta experiência intensa e repleta de “leituras de almas” no hospital psiquiátrico, sai o segundo livro de Claudia: “Bem Vindo ao Mundo dos Raros” (2004). Dois anos depois, ela publica seu primeiro romance: “Mulher Moderna tem Cúmplice”, este sobre violência física e psicológica contra mulheres a partir de relatos registrados por Claudia ,após conversas e vivências com mulheres da periferia e outros lugares.
“Cidade Tiradentes, de Menina a Mulher” é o quarto, porém não último livro (Claudia já está trabalhando na próxima obra). Aborda de forma lírica (marca registrada da escritora) o maior complexo habitacional da América Latina, onde Claudia viveu a maior parte de sua vida. Recentemente, ela se mudou para a região central de São Paulo, mas, ainda assim, não esconde sua enorme paixão pela Cidade Tiradentes. Além de visitar constantemente a mãe, me contou, também, que não troca por nada, por exemplo, a experiência única de fazer compras nas feiras do bairro ou de desfrutar das atividades culturais do local. Enquanto me contava eufórica sobre o quanto ama comprar frutas de boa qualidade que custam entre um e cinco reais na feira de lá, me mostrou algumas fotos, como a abaixo, do vendedor de frutas com seu livro Morte às Vassouras.
10620498_1004144059647420_6514189471462241427_o
Claudia comentou que algumas pessoas na Cidade Tiradentes não entendem como ela, jornalista, escritora de quatro livros publicados, rica em experiências, ainda se aventura em compras de frutas baratas na feira, por exemplo.  A resposta dela para tais indagações, é sempre a mesma: “eu sou rara, rica e milionária”. Tal frase, inclusive, se tornou uma de suas maiores marcas. Não se trata de riqueza material, mas de alma e, quanto a isso, ela me explicou da melhor forma possível: “A alma não tem cor, a alma transa melhor, a alma é fodida… E as pessoas, ainda assim, colocam a alma na gaiola.” Claudia conta que só descobriu o seu poder, depois de se dar conta de que era rara, rica e milionária e que existem muitos pobres que “acham que são pobres” e ricos que “acham que são ricos”. “Muitas pessoas na periferia não se dão conta de sua riqueza. Acham que são pobres, mas são ricos…Para não sermos capachos da elite, do governo, temos que reconhecer a nossa riqueza.Descobri só com quarenta anos que aquele berço que tentavam me colocar, era rico.” Claudia afirma que o separatismo só gera mais ódio e que já está mais do que na hora das pessoas perceberem que precisam umas das outras e devem se misturar. Mas ela deixa claro que a transformação só é possível, através do amor : “O amor é três vezes maior que o ódio. O meu trabalho, só dá certo, com o amor… ”
É com a constatação diária de sua riqueza e com esse enorme amor por seu trabalho e pela própria vida, que Claudia desenvolve trabalhos sociais também riquíssimos. Através de palestras em locais como a Fundação Casa, presídios, clínicas psiquiátricas, casas de repouso e escolas, ela busca transmitir que todos somos “raros, ricos e milionários”. Relatando e até mesmo interpretando em cenas teatrais o próprio exemplo de suas batalhas, mostra em suas palestras que a constatação de nossa riqueza, unida ao amor,  é o primeiro passo para transformações.
1453280_1003583613036798_5283465296912398043_n 579704_619971304731366_351411281_n.jpg
1891350_668880566507106_951632557_o 11731671_1046888585372967_209859913753171793_o
Imagine uma jornalista que, determinada a conseguir a pauta, sugere para uma revista, uma matéria sobre o “réveillon no Complexo do Alemão”. Com a proposta aceita, pega, em pleno dia 31 de dezembro, um ônibus até o Rio e, em seguida, um táxi rumo ao local e lá entra, sozinha, sem conhecer ninguém. Passa a virada do ano com uma família que a acolhe muito bem e ainda transmite, através de seu olhar inegavelmente sensível, as experiências que viveu por lá. Esta é Claudia, rara, rica e milionária. Sem medo de seguir seus sonhos, afirma que desde que descobriu sua riqueza, deixou muitas das inseguranças de lado e passou a viver a vida da forma como ela deve ser: intensa. “Tirei a vestimenta de vítima. Os livros me deixaram atrevida. Eu não preciso pedir licença para ser quem eu sou.”
Atualmente, Claudia trabalha no Datafolha e está escrevendo seu quinto livro. Já apresentou o livro Morte às Vassouras na Universidade de Oxford, King’s College London e Universidade de Glasgow. Segue com suas palestras por aí afora, é convidada para participar de vários projetos incríveis e não cessa de sonhar e ensinar. De uns tempos para cá, tem se interessado, também, por Física Quântica e afirma que esta tem sido uma das engrenagens para seguir acreditando em seus sonhos. Basta acreditar. É essa força de pensamento que a levará, em outubro, para Barcelona. “Eu tenho um livro todo traduzido para o Espanhol. O que devo esperar? Não tenho dinheiro o suficiente ainda, mas já estou te falando…Eu vou pra Barcelona apresentar o meu trabalho em outubro.” Essa mesma positividade é a que a faz afirmar que quando uma pessoa descobre a sua riqueza, passa a atrair para si outras pessoas e momentos ricos.Exemplificou sua teoria, descrevendo a  oportunidade inesquecível que vivenciou, quando ficou hospedada em um barco no Rio Sena. Pouco depois de fazer essa afirmação, um garçom deixou em nossa mesa uma porção de pipoca como cortesia. “Está vendo? É disso que eu estou falando…Olha que coisa rica…”
Saí do Varanda com um convite irrecusável para passar um dia na Cidade Tiradentes, conhecendo as riquezas que existem por lá e uma vontade enorme de sair por aí, entrando em contato com pessoas e histórias ricas, almas intensas e cheias de sonhos… Claudia soube superar barreiras sociais e literalmente”voar” em busca de seus sonhos. Soube fazer de seus momentos mais difíceis degraus para chegar mais próxima a seus objetivos e, quando atingiu muitos deles, não contente em se ver cada vez mais feliz, fez questão de mostrar para outras pessoas que elas também podem ser felizes. Claudia também me disse que sou rara, rica e milionária e confesso que saí do restaurante realizada e segura dos meus passos. Não há nada mais rico do que aprender com os aprendizados de outros, não há nada mais rico do que sair de nossa própria bolha e se abrir para outros olhares, vidas e histórias. E para concluir, não vejo nada que descreva melhor a minha sensação de realização com essa experiência, do que um maravilhoso trecho escrito por Claudia Canto: “Creio que ser “Rica” trancada em quatro paredes, olhando pelo buraco da fechadura, com medo de gente de verdade, deve ser um sofrimento sem tamanho.
Por um mundo com mais equilíbrio!”
11013124_919360498125777_2193389018015004144_n